Gado Manhoso - um ponto de vista alentejano


Alentejo interior. Uma pequena vila com 2500 habitantes vive afastada do bulício dos grandes centros. Aqui vive-se com mais lentidão, o tempo rende mais. Mas renderá, para a maioria? Trabalho mal remunerado, adolescentes sem perspectivas risonhas, quem quer e/ou quem pode vai estudar para fora.
Mas a vida continua e é todos os dias e, como em todo o lado, há uns dias melhores que outros.

Há dois largos principais na vila, o primeiro onde se situa o terminal de camionagem, onde se sentam os mais velhos a conversar, fazendo lembrar pardais pousados num fio telefónico, o restaurante Rotunda da D. Luísa e do marido, o Sr. Miguel, pais do Toninho, empreendedor incansável da vila, o lar da 3ª idade e uma fonte pública onde se vem buscar água e onde as mulas, burros e cavalos matam a sede.

No segundo, temos a Biblioteca Municipal, uma farmácia, a Caixa Agrícola e o Café Central, propriedade do mesmo casal há décadas. Do Sr. Feliciano, que lá começou a trabalhar com 14 anos, agora já com 54, e da D. Joaquina, cujo filho único se formou recentemente em bioquímica para orgulho e descanso dos pais.

Episódio curioso passou-se numa consulta ao médico do amigo Feliciano, na qual o doutor, depois de observar as radiografias, o avisou:
- Sr. Feliciano, o senhor tem que deixar de fumar! Tem aqui uma mancha muito feia nos pulmões!
Feliciano olhou para a mulher, que o acompanhava, incrédulo, e retorquiu:
- Ó S’outor, mas eu não fumo! Nunca fumei na minha vida!
- Mas olhe que fuma sim, pode não ser dos seus cigarros, mas o senhor fuma e não é pouco!

Mas o Café Central é o sustento da família… É no Central, com os pulmões manchados pelos cigarros dos clientes, que ironicamente lhe proporcionam o sustento por um lado e lhe tiram anos de vida por outro, que os podemos ver diariamente a trabalhar. Não esquecendo o Sr. Hélio e o Sr. Joaquim, preciosas ajudas.

Junto à escola da vila, o amigo Pinto tem também a sobrevivência assegurada com o seu café.
Aos 11 anos trabalhava como agueiro, orgulhosamente. Carrinhos de mão atestados de bidões grandes cheios com água, que levava encosta acima para os trabalhadores na serra. Nas pedreiras do célebre mármore verde. Uma beleza rara. Profissão de seu pai e sua também, até o corpo já pedir um trabalho mais leve. Mas gostava daquele trabalho, dava-lhe importância, naquela idade, ser ele a dar de beber aos homens mais velhos.
Como era importante ter a roupa suja ao fim de um dia de trabalho, quem não se suja... o miúdo Pinto escondia-se para manchar de terra a sua camisa branca, para não destoar dos demais. Era um deles!

E é por causa dele que este texto existe. Certa noite, fui lá beber um café e dar dois dedos de conversa.
Estava sintonizada a TVI e a sua Quinta das Celebridades. Inevitáveis os comentários.

- Olha-me este, olha-me aquela, olha aqueloutro...
- Que vergonha! Olhem-me só esta miséria, mas isto é alguma coisa, mas que jeito é que isto tem? – comentava.
- Celebridades?... Minha Nossa Senhora, mas célebres em quê? Isto está cada vez pior! Onde isto chegou!

O Alentejano tem sempre uma resposta na ponta da língua, simples, mordaz, original. E assim foi.
Depois do chorrilho de impropérios que ambos despejámos a respeito deste recentíssimo dejecto televisivo, o amigo Pinto baixa a cabeça por instantes, como quem tenta concluir uma ideia, e, erguendo a cabeça:
- Ó senhor, aquilo que ali está... É tudo gado manhoso.

Não diria melhor. Gado Manhoso.